Anjo Caído

Eu desejei que tivessem respeitado o meu medo de altura quando criança, mas lembro, carinhosamente, de meu pai me dizendo “quanto mais alto, mais próximo de Deus, meu filho”. No momento, achei que aquilo significava algo realmente bom, e foi essa a desculpa na qual eu acreditaria todos os dias, por muito tempo, enquanto subia os treze andares depois da aula. Nas terças, quando tinha aula de ciências, era ainda mais cansativo. Hoje é segunda-feira, e eu ainda não consegui pegar no sono. - Já usei todas as drogas, já li centenas de livros, já beijei todas as bocas, já escrevi bilhões de versos, mas não adianta: morar perto de Deus é meu castigo; porque esse maldito do andar de cima resolveu tirar tudo de mim.

Por viver aqui, acostumei a ter de olhar pra baixo pra ver alguns pássaros voar. Orgulhei-me, ridiculamente, por colocar a mão pra fora da janela e receber os pingos de chuva antes dos milhares de transeuntes lá de baixo; chorei lágrimas que caíram por treze andares, deixando marcas nas janelas, fazendo poças na calçada. - É tudo (ou quase tudo) muito longe daqui: o perdão, os sorrisos, o amor, os prazeres, os parques lotados de casais, os botecos lotados de canalhas, e, até mesmo as grandes avenidas, lotadas de corpos lotados de tudo o que se pode imaginar. Já o décimo terceiro andar, é cheio de raiva, de indignação, de pobreza de espírito, de gritos insanos e silêncios mortais. O décimo terceiro andar é lotado de desesperança, de sofrimento e de angústia. É lotado de mim. Eu sou o décimo terceiro andar. Com suas paredes rabiscadas, salas vazias, sem crianças no corredor, sem pai. Sem paz.
Eu me sento no chão, exausto, e penso “logo a morte vem me salvar”. Afinal, foi ela que veio chamar meu pai pela janela. Foi atrás dela que ele voou buscando salvação. E meu vizinho de cima não fez nada. Talvez porque estivesse dormindo. Talvez porque é um bosta.
Sou criança abortada, adolescente suicida, e já fazem, pelo menos, cinco dias que eu não me mato.
Aqui perto do céu não há muitos vizinhos, o que me faz sentir só, e, aliás, eu ainda não falei com Deus, mas continuo subindo os treze andares. Continuo perto do Senhor, que é pra quando eu lhe encontrar, esse filho da puta me ouvir dizer em alto e bom som o quão grande é meu ódio por ele.