29.9.10

Memories

No começo, bem no começo, eu me lembro do modo em que você deitou sobre minhas pernas, pra conversarmos sobre nossas bandas favoritas, sobre as aulas chatas do semestre passado, sobre a previsão do tempo do dia seguinte, sobre qual filme escolher ou se nossa casa no The Sims teria dois ou três quartos. Escolhas nunca foram exatamente problemas se havia a opção “nós”. Enquanto você falava, eu ouvia; sim, eu ouvia, não sentia, eu ouvia seu coração bater, porque meus ouvidos involuntariamente se aguçavam quando você estava ao redor; eu sempre estava disposto a te ouvir. Eu ouvia Radiohead também, muito Radiohead, e de Radiohead eu me embriagava; e de sua voz eu me embriagava; e não havia ressaca. Mesmo quando a boca calava o corpo queria falar, e assim passávamos dias e noites em diálogos incansáveis, em prazeres, invenções, descobrimentos. Você vestia a minha blusa favorita, ah, você ficava tão bem nela. Listras. Depois você partiu. Eu vesti minha blusa favorita, e as listras tomaram meu corpo, minha vida. Inconstância. Dia sim, dia não, café com leite, arroz com feijão. Tempo de morte, de luto, de luta.

Eu lembro que em Julho não fazia mais frio, não lá naquelas ruas apertadas, não nos rostos daquelas senhoras ocupadas com a roupa no varal, com a panela no fogo, com as mãos no fogo. Enquanto todos pareciam procurar, nós estampávamos sorrisos cínicos para todos os lados, como quem diz “eu achei e não vou lhes dizer onde”. Ouvimos Coldplay, e de Coldplay nos embriagamos, e por Coldplay falamos um pro outro o que os outros não souberam falar ouvindo Coldplay. Haviam os animais de estimação, haviam os almoços à mesa, haviam os passos silenciosos caminhando para os quartos, haviam as guerras de travesseiro, havia paz, havia tempo. Não, não havia muito tempo.

Quando as gotas salgadas lhe corriam a face, eu me afogava. Afogava-me em você e te cuspia na boca todo o doce que podia. Listras, sempre listras.
Eu te acordei e eu te dormi.
Já não era mais Julho, já não era mais cronológico, não era mais Brasil. Agora eu já te amava em mais idiomas, em outras latitudes e longitudes. Números, eu escrevia vários números, fazia contas; somava, multiplicava. Diminuía um pouco pra arredondar, pois sempre odiei números quebrados. Com os números eu fazia poemas, eu previa um futuro. Mas eles me traíram.
Eu pensava em comprar materiais para construir nossa casa, e eu até cogitava que as paredes fossem vermelhas. Assim como você, assim como eu. –
Chegou o verão. Tempo, temos todo tempo do mundo; vamos, não temos tempo. Corremos, sentamos, subimos e descemos escadas, corredores, ruas. Subimos nas nuvens. E lá ouvimos Radiohead, Coldplay, Los Hermanos, Vanguart, The Killers, ouvimos muita coisa, e nos embriagamos. Ouvíamos a nós mesmos, a respiração acelerada, sussurros, os aquários. Me desculpa se dormi demais, eu relutei contra meus olhos, disse pros sonhos não tomarem conta, pra não me levarem.

Ronco forte dos motores, cabeça na janela suada, olhos atentos, olhos molhados, olhos pedintes, pedindo por abrigo, pedindo por mais tempo, pedindo por alternativas, pedindo por razões, por motivos, por respostas, pedindo por carinho, por toque, pedindo por descansar sobre as pernas, pedindo por mais um pouco de The Sims, por mais um mergulho na piscina, por mais um café da manhã, pedindo por mais uma música, ao menos mais uma música. – Mãos levantadas, acenando. Não! Não pode ser! 20 km por hora, velocidade máxima permitida. Você corre junto comigo. Na janela suada as marcas das mãos. Pedindo. Pedindo pra você ficar.

Madrugada, luz do luar, cochichos dos casais, dos velinhos, das crianças. Não fumo, não bebo, não como. Penso. Penso em você. Ontem. Hoje.
Ouço você, atento, ouço um pouco mais alto, apenas ouço, não vejo, não sinto o cheiro, não toco. Ouço e me embriago, me embriago novamente em você.

E hoje ouço Beatles, mas nunca é o suficiente.

1 Falaram mais sobre isso:

pâற Gαяdєи disse...

Me identifiquei e terminei de ler completamente em silêncio, eu fiquei sem palavras. Texto explêndido!